Sempre me disseram que, quando se trata da água, ficar na superfície é mais seguro. Afundar é perigoso. Não se sabe o que tem lá embaixo. Na verdade, até mesmo boiar tem seus perigos, porque seres humanos não foram feitos para viver em ambientes aquáticos.
Mas um dia, eu conheci alguém que me convidou a mergulhar. Sou curiosa e fui. A paisagem era bonita, um pântano cheio de árvores verdes com raízes protuberantes que existiam parcialmente dentro e parcialmente fora da água. Parecia tão segura e tranquila a vida daqueles seres que conseguiam habitar os dois mundos. Porque seria perigoso entrar? Eu queria ver o que nadava por entre aquelas raízes.
Quando afundei, peixinhos brilhando em várias cores se revelaram diante dos meus olhos, alguns bonitos, outros um pouco estranhos. Às vezes sentia medo porque lembrava do que me disseram sobre os perigos de entrar na água, mas a curiosidade era maior e eu segui descendo.
Novas formas iam aparecendo a cada momento, e eu ficava cada vez mais curiosa e animada. Descia, descia e descia, não pensava no tempo que já tinha passado lá dentro. Eu não estava sozinha e mergulhava acompanhada, confiando nos meus próprios pulmões para me sustentar até onde eu quisesse ir.
A partir de um certo ponto, comecei a perceber que sentia o ar acabando, e comecei a me preocupar. Será que deveria voltar à superfície? Eu já havia descido e o ambiente parecia cada vez mais familiar, como se eu começasse a fazer parte dele, e eu não queria mais subir porque estava me divertindo! Novos peixinhos apareciam, mas os arredores também ficavam mais escuros conforme eu me afastava da luz do sol e me aproximava da lama no fundo.
Continuei descendo. Eu queria muito ver e tocar naquela lama, sentir a textura e o peso dela. Não parecia faltar muito agora, mas eu não sabia se o ar nos meus pulmões seria suficiente. O nervosismo aumentava, mas eu estava determinada a alcançar meu objetivo. O fôlego se esvaía, meus pulmões doíam e os músculos sentiam o efeito da falta de oxigênio, mas nada mais podia me fazer desistir. Meu coração acelerava, e eu empenhava todas as minhas forças para chegar no fundo.
Eu estava quase lá quando o ar acabou. Minhas reservas tinham se esvaído e eu não tinha mais nenhum resquício usável de superfície para empregar no funcionamento do meu corpo. Naturalmente, inspirei. E foi aí que percebi: diferentemente de tudo que sempre haviam me dito, os seres humanos são capazes de respirar embaixo da água.
Esse conto foi uma maneira inicial de dar vazão a alguns sentimentos novos que estavam surgindo e que eu não conhecia antes. Me aproximar do Mestre Rohm e buscar aprender com ele estando no PEP foi o que deu início a essa jornada, na qual eu nunca estive sozinha, mas sempre acompanhada dele próprio e das outras pessoas curiosas que resolveram se juntar à aventura. Nos últimos anos que passei convivendo e aprendendo com Mestre Rohm, fui me tornando cada vez mais capaz de me conhecer e entender de que maneira eu estava – ou não – no controle do meu próprio corpo. Ainda que a minha primeira aproximação de Mestre tenha sido por curiosidade e por vontade de tentar algo novo, os passos seguintes se deram por outras motivações. Confesso que demorei 2 anos e uma Peregrinação de Desenvolvimento Humano para entender que a razão de eu estar no PEP não era apenas para fazer pesquisa, e sim para me desenvolver como pessoa e me construir como uma liderança transformadora. E sim, isso quer dizer que nem eu mesma entendia o que eu estava fazendo no PEP durante esses dois anos, apesar de já ter começado a percorrer esse caminho de desenvolvimento, claramente de forma pouco consciente.
O mergulho do conto também pode ser entendido como um mergulho para dentro de si, em busca do autoconhecimento, não querendo encontrar o que todos ao seu redor dizem que existe, mas sim descobrir o que podemos inventar para nós mesmos. O texto de hoje foi construído em cima da frase de Ralph Waldo Emerson, que nos incentiva ao dizer “Não vá aonde o caminho possa levar; ao invés disso, vá aonde não existe caminho e deixe uma trilha.”.
Quero acreditar que ninguém vai ler meu depoimento buscando uma “resposta certa” de como o conto “deveria” ser interpretado simplesmente porque a mesma pessoa escreveu as duas partes do texto. A minha experiência é um pontinho no meio de um mar de vidas que habitam esse planeta, cada uma delas com uma perspectiva singular sobre aquilo que o universo nos apresenta. Essa diversidade é uma fonte de extrema beleza e possibilidades de aprendizado, e eu prefiro ouvir todas as interpretações diferentes ao conto do que ver alguém tentando se encaixar em uma das que foram mostradas. Para além do conto e da rápida reflexão sobre ele nos parágrafos acima, a seguir está um depoimento de como tudo isso se aplica na minha vida, com exemplos concretos.
Você faz ideia do que é não existir? Achar que a vida é um grande jogo em que a gente erra e acerta e segue regras e passo-a-passos? Acreditar que fabricar sentimentos é o mesmo que sentir alguma coisa? Foi assim que eu passei uns 20 anos da minha vida. Tudo era duro e rígido, para onde eu olhava, via regras e seguia todas elas. Me dizia perfeccionista, mas eu era egocêntrica e covarde. Meu objetivo nessa época sempre foi conseguir o status de menina comportada e boazinha, a princesa, a boneca. Parecia que o mundo todo tinha planos para mim, menos eu. Que vida era aquela em que eu sobrevivia sem existir?
Eu me via tão dependente de homens que eu fazia minha vida inteira girar ao redor das conquistas relacionadas a namorados, e fabricava os sentimentos necessários para que eu pudesse seguir jogando. Eu estava sempre em busca de respostas concretas porque eu não tinha subjetividade. Ia atrás da racionalidade porque era incapaz de sentir qualquer emoção. Eu queria colocar pessoas em posições, cargos, não queria desenvolver relacionamentos reais, inesperados e impossíveis de planejar. Eu não queria viver. Eu me matava aos poucos comendo mal e bebendo demais, me machucava porque achava que eu merecia porque não tinha valor.
Um dia, eu descobri que beijar alguém podia me fazer sentir que havia fogos de artifício explodindo de dentro de mim para o mundo. Foi assim que eu percebi que, durante os 20 anos anteriores, a única coisa que eu soube fazer em relacionamentos amorosos era ler códigos, sinais, falas, comportamentos, e inventar algum sentido para aquilo – que não precisava ser verdadeiro, eu só precisava me fazer acreditar que era: eu não conseguia sentir nada! Meu mundo era binário: certo e errado, verdadeiro e falso, real e inexistente. Tudo eram regras, punições por errar e prêmios por acertar. Será que algum dia eu já consegui realmente me conectar com alguém? Pelo menos com algum amigo? Quando, hoje, eu olho ao meu redor e me sinto sozinha, me pergunto se posso mesmo colocar a culpa no isolamento e na pandemia. Eu mesma fui a causa dessa situação?
Antes de poder viver a felicidade dos fogos de artifício, eu precisei entender e aceitar que a pessoa que eu beijasse não podia ser um homem, como todo mundo esperava que fosse. A pessoa precisava ser uma mulher. Até esse ponto, nem posso dizer que vivi algo de tão especial assim; as pessoas certamente entendem e aceitam que são homossexuais hoje em dia com mais facilidade do que em outros momentos no passado. Mas olhando para o quadro geral, de repente nada mais parece ter respostas certas como antes, não existe mais um manual do que eu posso manifestar no mundo com relação a muitos aspectos, inclusive normas de gênero, que antes eu seguia sem entender porque. Eu sinto que existo no mundo para cuidar e proteger outras pessoas, mas uma donzela bem-comportada fica muito limitada para fazer isso e precisa sentir que deve ser protegida, e não proteger. É impossível para mim encontrar um propósito na vida estando presa a essa obrigação.
Eu me sentia vazia e morta por dentro durante todo esse tempo porque sempre me senti obrigada a fingir ser uma pessoa que nunca existiu, e que hoje eu posso chamar carinhosamente de “minha persona”. Essa foi a boneca, o avatar que eu criei para navegar pela sociedade, e que agora eu quero jogar fora como se fosse uma casca velha que não tem mais utilidade.
É esquisito demais desmontar a minha persona e ver como não sobra NADA. Nada do que a minha persona era me serve. Quando eu percebi que todos os “amores” que eu achava ter sentido eram de mentira, a minha capacidade de manter esse avatar desmoronou em questão de dias. Tudo está indo embora como se fosse um pesadelo do qual eu finalmente consigo acordar, como se a névoa fosse se dissipando e desse lugar a um espaço amplo e iluminado por diversas luzes de todas as cores. Tudo tem ficado tão mais leve. Tudo tem sido tão mais simples e fácil.
Esses têm sido dias de medo, por vezes paralisante, de todo o desconhecido que há pela frente. Mas também têm sido dias com uma energia que eu nunca vi em mim antes, e que aparentemente estava sendo usada para manter a minha persona em funcionamento. Assim que a persona começou a se desfazer, a energia começou a sobrar para todo o resto das coisas que eu queria fazer, e eu comecei a poder escolher onde coloca-la.
A Sofia quietinha e pensativa de hoje pode parecer igual à Sofia anterior por fora, mas é outra por dentro. Antes, a minha persona ficava quieta por medo de se expor. Hoje, quando eu fico quieta, é porque estou refletindo sobre algo, deixando os pensamentos e sentimentos surgirem e observando eles dançarem dentro de mim. Mas assim que o mundo me chama, eu retorno. Eu estou num corpo vivo que sente, responde ao mundo, não acredita que precisa se prender a um ou outro sentimento esperando que alguém me dê atenção. Eu nem tenho ligado mais de deixar as minhas versões para trás, só sigo e esqueço o que foi embora. Se for importante, vai voltar; se não for, já passou.
Eu não quero mais me isolar, estar com outras pessoas significa me libertar de mim, de qualquer identidade fixa que eu esteja tentando formar. Estar sozinha é estar presa nos mesmos vícios de pensamentos, o relacionamento com outras pessoas não me dá tempo de me agarrar a qualquer identidade, eu só reajo de acordo com o que sinto e quero no momento e me construo no caminho como uma pessoa que está sempre mudando, nunca igual. Quem sabe como as outras pessoas me veem? Cada um me vê de um jeito, nenhum deles igual ao jeito que eu me vejo ou tentava ser vista, e isso está absolutamente fora do meu controle. Essa é a primeira vez em que essa percepção é uma coisa boa: ao invés de só ter medo, agora eu tenho medo E curiosidade, animação, alegria, porque se tudo der errado, eu sei que eu tenho a escolha de pelo menos aproveitar o caminho até o fim desastroso 🙂
A reflexão a partir da frase do Ralph Waldo Emerson me ajuda a ver como podemos nos mover em direção a um caminho que ainda não existe e construí-lo, deixando uma trilha que pode servir para que outras pessoas percebam que não estão fadadas a repetir o que já é conhecido e sintam-se encorajadas a criar, inovar e construírem a si mesmas, como uma obra de arte viva, sempre em movimento. Hoje, eu já não acho mais que exista uma Sofia fixa a ser conhecida, mas sim um ser mutante a ser observado e construído em diálogo com o que me cerca. Conforme eu passo por esse processo e ganho esses entendimentos, eu vejo que nada nunca me obriga a ser igual a como eu era antes ou seguir o script da minha persona (minha “identidade”): eu posso ser quem eu conseguir ser toda vez que EU ESCOLHER TENTAR.
Esse processo me permite, cada vez mais, tomar as rédeas do que eu faço com a minha vida, com o meu corpo, porque ao invés de tentar seguir o que outras pessoas me encaminham para fazer para agradá-las cegamente, ou tentar me encaixar num modelo de vida que não me serve de maneira nenhuma, eu tenho a possibilidade de primeiro entender o que EU quero, e DEPOIS decidir o que fazer com isso. Se nós estamos constantemente tentando racionalizar o que pensamos e sentimos, nós acrescentamos uma camada de julgamento que encobre nossos pensamentos e sentimentos antes que eles sequer tenham chance de se manifestar na sua forma crua e natural. Quem ganha quando eu sou incapaz de ver o que eu realmente penso e sinto? Certamente alguém ganha, porque eu nunca vi nenhuma outra pessoa que eu tenha conhecido, além do Mestre Rohm, que tenha demonstrado interesse em me ajudar a crescer para que eu fosse capaz de alcançar isso.
Chegar ao fundo do pântano, para mim, é me dar conta de que a vida que eu levava antes era conduzida pela superfície de quem eu podia ser, e não por quem eu de fato fui, sou e serei. Nesse momento da minha vida, eu tenho a sensação de que cheguei ao fundo de algo depois de um mergulho muito longo, porque eu finalmente consigo olhar diretamente para o que eu sinto e para as minhas vontades quando eu escolho fazer isso. Por mais que pareça algo simples, não era simples para mim, e é tranquilizador chegar nesse lugar onde, ao invés de desprezar, negar ou rejeitar os sentimentos que surgem, eu posso só observá-los.
A partir desse lugar, eu consigo ver que existem, de fato, lugares onde não há caminhos e onde podemos construir trilhas, e é muito feliz poder fazer isso ao lado do Mestre Rohm e de outras pessoas que também têm interesse em fazer isso junto comigo!
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