A comunicação no ciberespaço ficou restrita ao controle de órgãos públicos até o ano 1987 quando, pela primeira vez, abriu-se a rede para o uso público e exploração de empresas privadas1. Nos primórdios, as facilidades para a comunicação via internet alimentava a esperança de melhorar a qualidade de vida, tendo em vista a rapidez e praticidade possibilitadas. No entanto, a difusão para o acesso público em um modelo no qual empresas privadas disputam ferozmente a atenção dos internautas, produziu ambientes online nos quais os interesses econômicos dos detentores das plataformas estão acima dos interesses da sociedade. Desse modo, as grandes facilidades de comunicação possibilitadas via ciberespaço acabam não produzindo os retornos tão sonhados pelos cidadãos.
Na história da internet, com a grande quantidade de pessoas circulando na rede e a pouca regulamentação do ciberespaço, a liberdade excessiva para empresas privadas impulsionou a formação de um monopólio de mídias sociais e sites de busca (Google, Facebook, Instagram, Whatsapp, Twitter e TikTok), cujos modelos de plataforma programados pelos desenvolvedores são ambientes online obscuros, nos quais os usuários não sabem como funcionam a organização das informações nas páginas por meio das quais se comunicam diariamente.
O processo de classificação dos conteúdos a serem vistos pelos usuários nos feeds de notícias, mecanismos de busca e de recomendações não são revelados, mesmo que as empresas de mídias sociais se deem o direito de extrair dados privados bastante reveladores, dentre eles a localização, contatos, identificadores, histórico de buscas, de navegação, compras, saúde, informações financeiras, informações confidenciais2,3. Com esses dados, as empresas elaboram precisamente o perfil dos usuários e desenvolvem sistemas de organização de informações especializados em direcionar conteúdos de acordo com o que foi identificado no comportamento online como mais provável de agradá-los e torná-los o mais viciados possível nas plataformas.
Nas redes sociais que monopolizam o mercado, além de não saber precisamente o que é feito, os usuários não têm o direito de decidir em relação ao funcionamento dos sistemas que organizam as informações. No Facebook, por exemplo, a autonomia dos usuários para decidir a organização dos conteúdos no feed de notícias é somente temporária: “Você pode visualizar publicações ordenando pelas mais recentes, mas o feed de notícias retornará à configuração padrão com o tempo.”4. Dessa forma, mesmo que os usuários queiram alterar a lógica que ordena as informações de acordo com seus interesses de fato (não aqueles que os algoritmos programados pelos detentores das plataformas identificam e atribuem automaticamente aos perfis), suas intenções ficam sujeitas às “configurações padrões”.
O pior de tudo é isso ser feito ao mesmo tempo em que se oferece uma porção de possibilidades de customização das páginas, criando a falsa sensação nas pessoas de que podem decidir em relação ao que encontram online. Isto é, a ideia de que, se escolhemos nossos amigos devidamente, decidimos em relação à qualidade dos conteúdos encontrados online, ou, se optamos entre as diversas opções existentes de bloquear certas pessoas, priorizar outras nos feeds de notícia, seguir canais, participar de comunidades, eventos, e as tantas formas de “personalizar” nossos perfis online, estamos com as rédeas para decidir os conteúdos com que nos deparamos online. Mas são todas meras ilusões para acreditarmos que, quando usamos as mídias sociais e os sites de busca, o Google, o Twitter, Facebook, Instagram, TikTok, somos “livres”.
Na prática, os desenvolvedores das plataformas de mídias sociais conquistaram um poder de direcionamento de informações maior do que o de qualquer veículo de mídia existente na história, mesmo sendo capazes de extrair informações extremamente sensíveis dos usuários para programar os misteriosos sistemas padrão de organização das informações online. Os impactos que as decisões dos detentores das plataformas geram sobre o debate público são enormes e produzem efeitos inconcebíveis para sociedade.
Os regimes de visibilidade impostos pelos desenvolvedores das páginas reduzem o potencial de desenvolvimento da empatia entre os cidadãos, já que os mecanismos de funcionamento das plataformas tendem a priorizar as informações de acordo com a identidade no comportamento de cada perfil. Nessa lógica, o lucro gerado com o prolongamento do tempo de navegação dos usuários é a única prioridade, reduzindo-se as possibilidades de ampliar o contato dos usuários com conteúdo diferentes daqueles que eles tendem a se interessar. PS. Isso quando estes mecanismos não lucram com o direcionamento de conteúdos racistas5, homofóbicos, sexistas6, transfóbicos, entre outros preconceitos que podem ser identificados no comportamento dos usuários e fomentados.
Quando falamos de qualidade de vida, é preciso exigir que seja possível satisfazer nossos interesses como cidadãos, por isso, é o mínimo demandar que possamos decidir em relação ao funcionamento das plataformas nas quais nos comunicamos diariamente. Mais do que decidir entre meras opções oferecidas pelas plataformas e aceitar os conteúdos direcionados automaticamente por seus algoritmos obscuros, devemos nos preocupar em tornar possível personalizar os sistemas de organização das informações online.
Embora isso possa parecer um tanto abstrato, a mera possibilidade de ver as informações ordenadas pelo momento da publicação em feeds de notícias de redes sociais já seria um imenso avanço que permitiria analisar as postagens e acontecimentos nas redes sociais com base em algum critério conhecido. Além disso, poderíamos ver de acordo com a ordem de mais curtidas nas últimas 24 horas, 48, 72… por exemplo, as mais comentadas, as mais relacionadas à algum assunto de interesse, entre outras possibilidades diversas que existem, mas não podemos escolher nas plataformas dominantes de hoje e por isso limitam muito a qualidade da comunicação no meio ambiente online.
A manutenção desse modelo atual serve apenas para enriquecer ainda mais os detentores das plataformas, uma vez que a busca é por sabotar a organização das informações online para em troca oferecer conteúdos inúteis e viciantes para os usuários das plataformas. Efetivamente, as redes sociais não são ferramentas ideais para impulsionar engajamento em torno de causas públicas, mas sim as ferramentas mais complexas já inventadas para imbecilizar a sociedade. O argumento de que é necessário manter esses modelos para sustentar os custos de grandes servidores com muitas pessoas navegando ao mesmo tempo não faz nenhum sentido, muito menos devemos aceitar que as empresas sustentem esses modelos em nome da competição do mercado.
Devemos exigir que possamos saber os critérios adotados para selecionar os conteúdos nos feeds de notícias, mecanismos de busca e recomendações. Nenhum site de buscas ou redes sociais deveria tirar de nós o direito de saber de que forma as quantidades infinitas de informações online são organizadas e oferecidas aos nossos olhos. No fundo, deveríamos todos migrar para plataformas nas quais possamos personalizar a organização das informações nas páginas da maneira como bem entendermos, de forma que possamos nós cidadãos definirmos o que consideramos uma plataforma “organizada”.
- https://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u34809.shtml ↩︎
- https://apps.apple.com/br/app/instagram/id389801252 ↩︎
- https://apps.apple.com/br/app/facebook/id284882215 ↩︎
- https://www.facebook.com/help/218728138156311?helpref=faq_content ↩︎
- https://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/como-os-algoritmos-espalham-racismo/#cover ↩︎
- https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2021/03/08/como-o-google-contribui-para-perpetuar-estereotipos-sexistas.htm ↩︎