Ninguém nasce dono do seu próprio corpo. Na edição passada de Frases Rohmânicas e Nós, refletimos sobre a disciplina do fazer que é necessário ao guerreiro pacífico (que antes de fazer para os outros, deve olhar para si, para o que busca e ao que serve, com o objetivo de abandonar as ilusões que o mantém aprisionado) e sobre a disciplina do trabalho. Podemos entender este trabalho como o projeto de vida, o caminho em direção ao sentido da vida. Nesta edição, continuando as reflexões sobre o que buscamos e a que servimos, pensamos acerca da frase “Sem disciplina, sua vida está condenada a permanecer uma sombra pálida do seu potencial.”, de Steve Pavlina.
Ao ler “uma sombra pálida do seu potencial”, entendo essa sombra pálida como a vida de quem desiste de se libertar de suas ilusões, resistindo às mudanças necessárias e aceitando a zona de conforto de uma vida sem sentido, controlada por pessoas ou coisas que a pessoa controlada muitas vezes nem mesmo conhece. Nessa linha, pensamos o ensinamento de Mestre Rohm de enxergar a disciplina como um caminho para a liberdade, como uma ferramenta que auxilia as pessoas a tornarem-se donas de seu próprio corpo.
Acredito que as pessoas tenham uma tendência a pensar em uma pessoa disciplinada como alguém que só estuda ou trabalha o dia todo e não costuma sair com os amigos, nem coloca muito tempo em atividades prazerosas. Alguém que leva uma vida sempre igual e uma rotina muito rígida. Mas a disciplina é exatamente o que pode nos libertar disso. Ao conviver com Mestre nesses últimos anos, comecei a entender isso e buscar, cada vez mais, colocar esse ensinamento em prática. Por isso hoje, cito alguns pontos desse caminho.
1 – A disciplina abre tempo para que se veja o mundo
A indisciplina, da forma como eu entendo, pode levar a dois caminhos: o excesso de tempo livre ou a falta dele. Acredito que, enquanto não tomamos consciência de todos os estresses que derivam da falta de planejamento (o retrabalho, a impossibilidade ou grande dificuldade de lidar com imprevistos, a constante dúvida sobre o tempo de descanso no fim de semana etc.), é mais difícil mudar, uma vez que normalmente estamos “afogados” na rotina e nos afazeres diários. Mestre nos ilustra isso claramente no curso de IPS120.
À medida que criamos uma rotina para honrarmos os compromissos que assumimos (e aqui ressalto que não devemos, em situações ideais, assumir compromissos que não temos tempo de cumprir), conseguimos encaixar as atividades que devem ser feitas em um planejamento que deve, também, incluir espaço para o descanso. A disciplina nos oferece tempo a partir do planejamento consciente de uma rotina que faz sentido para a nossa vida.
É importante frisar também a diferença entre ser uma pessoa disciplinada e uma pessoa obediente. Uma pessoa que todos os dias acorda cedo, vai para o trabalho, realiza as mesmas tarefas, volta para casa, come e dorme não é necessariamente uma pessoa disciplinada: ela pode estar simplesmente seguindo uma rotina que lhe foi imposta sem nunca ter parado para refletir sobre aquelas ações. A disciplina é uma escolha que tem sentido: se a pessoa que segue essa rotina o faz com o propósito de melhorar a sociedade na qual ela está inserida ou evoluir como ser humano, então pode-se entender que ela fez a escolha de disciplinar-se ao ponto de seguir uma rotina possivelmente desagradável com o objetivo de causar um impacto positivo no mundo e/ou em si mesma.
2 – A disciplina nos permite olhar para além do desejo imediato
Ao planejar nossa rotina de forma mais realista, ganhamos a possibilidade de olhar para o mundo de forma mais tranquila e atenta. Assim, começamos a perceber que alguns comportamentos refletem escolhas pouco conscientes. De repente, notamos que passamos 4 horas por dia no Facebook e que isso nos atrasa para o trabalho todas as manhãs, além de nos fazer dormir mais tarde.
Nossos vícios e desejos imediatos até podem ser atendidos no momento em que aparecem, mas nós não precisamos fazer isso. Disciplinar-se é fundamental para observar esses ímpetos com distanciamento e percebê-los como realmente são: vícios e/ou desejos imediatos. Reconhecer a natureza volátil desses estímulos que nos dão prazeres momentâneos é importante para cortar da rotina comportamentos que, para além de não nos trazer felicidade no longo prazo, ainda minam nossa atenção no dia a dia.
Buscar a felicidade como algo duradouro com base nesses ímpetos nos causa frustração porque, ao invés de dar espaço para que a nossa mente descanse a aprecie o que acontece à nossa volta, tentamos “descansar” usando novos estímulos exteriores. Nossos relacionamentos, por outro lado, nos trazem prazer tanto no curto quanto no longo prazo. Perceber que o momento presente é precioso nos faz entender o valor das nossas relações e parar de tratá-las como mercadorias. É dar-se conta do valor das pessoas que nos amam e das relações que mantemos com elas, consequentemente agindo de acordo com isso.
3 – A disciplina nos permite viver no momento presente
Viver o momento presente é muito importante para nossa construção como pessoa, para o desenvolvimento de relacionamentos saudáveis e para a vida em sociedade, que demanda atenção para perceber o que acontece em volta. Fazer mais de uma coisa por vez é extremamente cansativo (comer vendo televisão ou ver um filme mexendo no celular) e muitas pessoas não conseguem reconhecer isso por não terem nem consciência de que alguns comportamentos seus refletem vícios determinados, muitas vezes, por forças externas, e não por escolhas próprias.
Essa forma de olhar o mundo também demanda disciplina à medida que precisamos querer ver o que acontece, ao invés de apenas olhar. Demanda também pensamento crítico e informação, que Mestre desenvolve conosco com muita paciência, tanto nas aulas de IPS quanto no PEP, ao compartilhar conosco notícias, materiais científicos, filmes e vídeos que nos abrem os olhos para a realidade. Dessa forma, refinamos, gradualmente, nosso olhar para nós mesmos e para nosso entorno. Entendo que esse seja o início da tomada de consciência.
4 – A disciplina permite a expansão da consciência
Ao superar o desejo imediato e ter vontade de ver o mundo com maior clareza, adquire-se um olhar mais tranquilo e crítico, tomando mais consciência do que acontece ao nosso redor. Esse é um exercício de olhar para a vida sem buscar emitir um julgamento instantâneo dos acontecimentos (evitando projetar nossos desejos no outro ou no mundo), mas refletindo sobre os fatos e buscando conhecê-los mais profundamente.
Muitas vezes pensamos a disciplina como um exercício de acostumar-nos a novos hábitos visíveis: atividade física, uma nova dieta, sair das redes sociais, ir ao psicólogo. Mas a disciplina vai muito além disso, já que é um caminho para a libertação. Por exemplo, há de se ter disciplina quando se deseja sentir menos raiva no dia a dia. Para tanto, precisamos primeiro inibir nossa reação instantânea de defesa quando nos sentimos atacados. Depois, refletir sobre a raiva e sua verdadeira origem. Por fim, devemos mudar nossa resposta às ações que nos geram esse sentimento. A disciplina consiste em percorrer esse caminho quando um estímulo exterior gera raiva. Ao fazer isso, percebemos, por exemplo, que o colega de trabalho que fala demais, na verdade, não sabia que incomodava as outras pessoas e só compreendeu isso quando, ao invés de sentir raiva e ignorá-lo, paramos para conversar com ele sobre o assunto. Reparamos que as coisas não são do jeito que são por um acaso do universo, mas sim porque alguém fê-las ser assim, e, da mesma forma que alguém deu início a um certo comportamento, outra pessoa pode pará-lo.
O autoconhecimento vem da tomada de consciência de que somos seres mais complexos do que os binarismos do mundo nos permitem ser. E essa tomada de consciência não vem enquanto nos mantemos distantes das possibilidades. Um homem não chega à compreensão de que é bissexual apenas por saber que homens bissexuais existem. Ele precisa duvidar de si mesmo e de tudo que aprendeu durante a vida para realmente tomar consciência dessa possibilidade. Mas também pode escolher inibir-se por toda a vida e nunca descobrir o prazer de relacionar-se com outros homens.
Questionar a si mesmo e às nossas ações demanda disciplina pois causa desconforto. Não estamos acostumados a seguir por caminhos que nos tragam sofrimento quando temos alguma consciência de que sofremos. Não costumamos parar para tentar conversar com alguém sobre um assunto no qual discordamos. Dificilmente nos forçamos a pensar sobre nossa infelicidade em um casamento quando estamos financeiramente estáveis e temos filhos. É raro que paremos para refletir sobre o real impacto de nossas ações no mundo porque responsabilizar-se por elas gera sofrimento (seja na forma de medo, raiva ou tristeza). Mas, depois que chegamos a esse entendimento, podemos escolher mudar.
5 – Disciplina para mudar o que é preciso
O processo de assumir-se responsável pelas próprias escolhas pode gerar um sentimento de culpa, medo, raiva etc. porque nos damos conta de que muitas delas podem ser guiadas por outras pessoas e de que, muitas vezes, tomamos certas atitudes tendo consciência de que podíamos ter seguido por outro caminho. Explico: muitas mulheres passam a vida planejando o dia do seu casamento e os nomes que darão a seus filhos. Após realizar tudo isso, algumas percebem que deixaram de lado outros sonhos como se dedicar à sua comunidade, aprofundar seus conhecimentos em alguma expressão artística ou experimentar outros tipos de relacionamento, e se sentem frustradas por não terem seguido esses sonhos. Essas mulheres realmente desejavam seguir essa vida? Quem criou o sonho da mulher dona de casa, que não trabalha nem estuda, é obediente ao marido e só se ocupa de cuidar dos filhos? Tenho uma vaga impressão de que esse sonho não foi criado pelas mulheres nem foi criado para elas. E é extremamente difícil para essa mulher frustrada assumir-se responsável pela escolha de levar essa vida (no caso das mulheres que têm escolha, claro). Fazer isso pode gerar um forte sentimento de culpa ou raiva pelo abandono dos sonhos que realmente eram dela, ou ainda um sentimento de medo por sequer considerar a possibilidade de abandonar o casamento e abraçar um novo estilo de vida minimamente mais próximo do que ela verdadeiramente deseja.
Além disso, percebemos que nossas escolhas refletem nas outras pessoas e na nossa sociedade. Toda vez que fazemos uma piada que diminui uma pessoa ou um grupo, contribuímos para que o mundo se torne um lugar mais intolerante. Da mesma forma, sempre que deixamos de defender alguém que está sendo atacado (seja um ataque em forma de “brincadeira” ou ofensa aberta), permitimos que o intolerante continue sem tomar consciência do que faz e assumimos nossa parte na violência cometida contra pessoas que talvez nunca viremos a conhecer.
Entender que precisamos nos esforçar para mudar nossas atitudes pensando nas consequências delas para nós mesmos e para o mundo demanda disciplina porque estar atento e buscando mudar o mundo muitas vezes nos afasta de pessoas que ainda não conseguem compreender ou responsabilizar-se por suas ações e o impacto delas. Trazer essas pessoas para mais perto de nós é um caminho difícil ou até impossível, em alguns casos. A disciplina nos mantém no caminho de aproximação ou afastamento necessários a um bem maior do que a nossa própria felicidade.
De forma geral, eu entendo que a disciplina é um caminho para a liberdade à medida que nos aproxima de nós mesmos e nos torna donos da nossa própria mente. Deixamos de buscar sempre o conforto pessoal e passamos a pensar coletivamente, fazendo os sacrifícios que conseguimos e evoluindo de forma a nos tornarmos cada vez mais fortes para vencer cada vez mais desafios. Ser livre é reconhecer o que realmente desejamos. Ceder descontroladamente ao “desejo” que vem antes da tomada de consciência é seguir um caminho que não foi desenhado por nós nem para nós.
O caminho para a libertação da sociedade passa pelo caminho da busca pela libertação pessoal, e a libertação pessoal demanda disciplina porque se posicionar contra o status quo nos traz sofrimento, pelo menos inicialmente.
6 – A disciplina pode colocar o sofrimento em perspectiva
Esse é um ponto que está apenas agora começando a ficar claro para mim, mas compreendê-lo verdadeiramente ainda vai demorar algum tempo. O que eu consigo ver hoje é que existe um caminho que nos leva à relativização do sofrimento que é causado por um posicionamento disruptivo frente à sociedade.
Corrigir os preconceitos dos nossos familiares que não nos tratam bem por falta de esclarecimento nos causa dor, nos demanda paciência e é um exercício de empatia que nós sabemos que eles não conseguem fazer ainda. Mas pode ser necessário porque, se nós não fizermos isso, provavelmente ninguém fará. Neste caso, abrir mão do rancor que guardamos para servir a estas pessoas será um exercício de gratidão por todas as coisas das quais elas abriram mão por nós, por todas as vezes em que elas tentaram nos amar e nos fizeram sofrer acreditando que estavam fazendo o melhor por nós. Será também um exercício de desapego do orgulho que nos impede de sermos vulneráveis e amá-las o suficiente para servi-las independentemente do que elas nos causaram – excluindo, claro, os casos extremos de pessoas que ainda não conseguem mudar (casos de violência em geral).
Esclarecendo: quando meu tio faz uma piada machista comigo durante um almoço em família, eu posso controlar a minha raiva, corrigi-lo de forma educada e precisa no momento e depois, aos poucos, deixar a dor passar. Quando meu pai me bate ou me humilha diariamente porque descobre que sou homossexual, eu preciso colocar a minha vida como prioridade e sair deste ambiente.
Esse é um ponto da disciplina que vai muito dentro de nós e, como eu disse no início, eu sei que ainda não o compreendo realmente, mas me parece um caminho possível, apesar de muito difícil. Comecei a entender isso no SDH 2020 quando percebi todo o bem que eu deixava de fazer a algumas pessoas quando eu me apegava à raiva que eu sentia delas. Se a minha intenção é deixar uma marca positiva no mundo por onde eu passar, então eu deveria me esforçar ao máximo para conseguir esse objetivo, inclusive abrindo mão do meu orgulho e me mostrando vulnerável até mesmo para as pessoas que me fazem sentir ameaçada. A vulnerabilidade é o que me conecta àquela pessoa, é o que me faz ter empatia por ela e, se eu não me conectar a ela de alguma forma, não consigo ajudá-la porque não conheço o ponto de onde ela parte.
É claro que diversos outros fatores perpassam o caminho da disciplina para a libertação. A fé, a motivação, características desenvolvidas ao longo da vida, acontecimentos que vivenciamos, pessoas que conhecemos e comportamentos estimulados durante a infância são apenas alguns deles. Esse foi apenas o caminho que eu encontrei para explicar o que eu entendo ter aprendido com Mestre Rohm até hoje.
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