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Programa de Estudos e Pesquisas em Desenvolvimento Humano, Formação de Lideranças Transformadoras e Governança Social
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Notícia

A Economia de Rosquinha e as tecnologias digitais: como a ampliação do acesso às tecnologias de informação e comunicação (TIC) pode oferecer apoio ao desenvolvimento sustentável

Em meio à pandemia da Covid-19, vemos diversos posicionamentos incorretos e perigosos de autoridades que insistem em colocar a economia antes de saúde e do bem-estar da população. Tais comportamentos nos trazem apreensão e, muitas vezes, medo: se não podemos confiar nas autoridades que governam nosso país em meio a uma crise global, em quem…

Sofia Xavier

Em meio à pandemia da Covid-19, vemos diversos posicionamentos incorretos e perigosos de autoridades que insistem em colocar a economia antes de saúde e do bem-estar da população. Tais comportamentos nos trazem apreensão e, muitas vezes, medo: se não podemos confiar nas autoridades que governam nosso país em meio a uma crise global, em quem vamos confiar?

Mas nem mesmo em um momento tão delicado e tenso como este recebemos apenas notícias ruins. Segundo reportagem do The Guardian publicada em 8 de abril deste ano, a cidade de Amsterdã, na Holanda, adotará um novo modelo econômico: a chamada Economia da Rosquinha.

Em uma TED Talk ministrada em abril de 2018, intitulada “Uma economia saudável deve ser planejada para prosperar, não para crescer” (no original, “A healthy economy should be designed to thrive, not grow”), Kate Raworth, autora que vem divulgando a ideia pelo mundo, discute o modelo capitalista atual, focado no crescimento infinito e os impactos que dele derivam. Ela aponta nosso “vício no crescimento financeiro”, que faz com que empresas estejam sob constante pressão para produzir mais, entregar mais e gerar mais lucro, o que recentemente deu origem a conceitos como “crescimento verde”, “crescimento inclusivo”, “crescimento inteligente” e “crescimento balanceado”. Estes modelos são oferecidos como supostas alternativas, porém não passam de uma variação de um sistema que dá claros sinais de falência por se basear em uma premissa principal que tem levado as sociedades à crescente desigualdade e o planeta ao esgotamento: o foco no crescimento. Para completar, ela afirma que nem mesmo a desmaterialização da economia será suficiente para conter o avanço da destruição do planeta no ponto em que estamos, e que uma mudança de paradigma é evidentemente urgente.

Assim, começa a apresentar a proposta para um desenvolvimento que considera mais do que os interesses do mercado, visando atender as demandas sociais dentro dos limites do planeta. Ao apresentar uma versão ilustrada do modelo, a autora de “Doughnut Economics: 7 ways to think like a 21st century economist” – publicado no Brasil pela editora Zahar como “Economia Donut: uma alternativa ao crescimento econômico” – mostra que estamos, ao mesmo tempo, excedendo os limites do planeta e deixando de atender a necessidades sociais básicas. De forma extremamente clara e forte, ela diz que, apesar de os economistas do século XX terem criado a ilusão de que o crescimento poderia, sozinho, consertar as desigualdades criadas pela própria busca pelo crescimento, isso nunca aconteceu e nunca acontecerá. Por este motivo, precisamos aplicar um novo modelo que considere o equilíbrio dos diversos ecossistemas do planeta.

Ao discutir em um artigo o modelo proposto pela Oxfam em 2012, o ecologista uruguaio Eduardo Gudynas aponta também para os problemas que derivam do entendimento ocidental do desenvolvimento, que abraça ideias como “a crença no progresso, a apropriação da natureza e o sonho do conforto material”.  O pesquisador afirma que o que deve ser combatido, na verdade, é a ideia de progresso que se baseia na dominação da natureza pela humanidade. Segundo Gudynas, a aplicação do modelo da Economia de Rosquinha deve ser cuidadosa para blindar o modelo contra governantes que tentassem reduzi-lo a algumas reformas menores que não modificariam o objetivo central de crescimento, sugerindo mais uma versão do já conhecido desenvolvimento e tirando a característica básica do modelo que propõe exatamente uma mudança radical de paradigma.

Por fim, Gudynas sugere que, ao buscar um progresso sustentável, devemos “abandonar as ideias tradicionais de desenvolvimento e consequentemente romper com a ética antropocêntrica que é característica da tradição cultural ocidental”. Da mesma forma, estruturas relacionadas ao sucesso como definido pela cultura ocidental devem ser abandonadas, como as que geram concentração de riqueza, conhecimento e poder nas mãos de pontos centrais, como aponta Kate Raworth na TED Talk de 2018. A economista nos oferece, em troca, um modelo de distribuição ilustrado por ela como uma rede, formato muito empregado recentemente por estudiosos que tratam das novas tecnologias digitais para falar sobre uma nova forma de comunicação e organização da sociedade que surge a partir das interações peer-to-peer.

Ao observar o desenho do modelo de distribuição, o conceito da sociedade em rede desenvolvida por Castells me veio à mente e comecei a me perguntar: de que formas as novas tecnologias digitais podem nos ajudar nessa transição de uma economia global focada no crescimento infinito para uma economia de compartilhamento que respeita tanto as necessidades básicas humanas quanto as limitações do planeta? Como podemos usar as novas formas de comunicação de forma a prosperar como espécie, sem destruir o planeta que nos abriga? Será que essas tecnologias e a nova forma de relacionamento (em rede, ao invés de partindo de centros) que surge com ela apareceram por acaso neste momento?

No dia 31 de março, o InternetLab deu início a um podcast semanal chamado Antivírus, que objetiva discutir questões relacionadas à internet e seus impactos mundiais durante a pandemia da Covid-19. No podcast de número 3, intitulado “Acesso à internet durante a crise”, discute-se como a desigualdade no acesso à internet afeta as pessoas durante uma crise como a que vivemos. Ao ter o acesso à internet impedido ou limitado, muitos são privados de informações básicas sobre como se proteger da doença, além de enfrentar grandes dificuldades para estudar ou trabalhar à distância.

A repórter da Agência Mural Ana Beatriz Felício chama a atenção para a falta de opções existentes no Brasil no que tange a conectividade. Ela revela que 40% dos brasileiros têm acesso a internet fixa graças a provedores locais, pequenas empresas que distribuem serviços de acesso à internet em locais em que as grandes empresas de telecomunicações (Vivo, Oi, Tim, Claro) não oferecem seus serviços. O pesquisador e coordenador do programa de telecom e direitos digitais do Idec Diogo Moyses comenta sobre as políticas públicas nacionais referentes à conexão dos brasileiros criadas após a privatização do setor na década de 1990. Ele destaca casos como o do Uruguai, que há alguns anos reestatizou o setor de telecomunicações, e o da Inglaterra, que permite que as empresas privadas trabalhem apenas na venda dos serviços aos consumidores, ao apontar como essas medidas facilitam que o país atravesse uma crise. Se o Estado detém o poder sobre as empresas que oferecem serviços de telecomunicação, estes não deixarão de ser oferecidos por causa da inadimplência, que atinge agora muitos pequenos provedores de forma irrecuperável.

Ademais, destaca-se no debate que as empresas privadas de telecomunicações não distribuem o serviço de acesso à internet de forma igualitária. Enquanto os moradores das zonas nobres de grandes cidades têm a opção de comprar pacotes de dados que permitem navegação à vontade, à periferia restam os piores pacotes, com serviços extremamente limitados e, ainda por cima, caros.

Mas fora de momentos de crise, por que estatizar as empresas que oferecem serviços de telecomunicação? No podcast, comenta-se que o motivo de alguns países terem optado pela estatização total ou parcial da oferta de tais serviços foi o entendimento de que o acesso à internet já se tornou um serviço básico, como transporte, saúde e educação. Ao permitir que as grandes empresas privadas de telecomunicações decidam qual tipo de serviço será ofertado em cada região do país, o governo abre espaço para que a lógica da competição defina como a população terá acesso a um serviço básico. Assim funcionam as estruturas de centralização de riqueza, conhecimento e poder comentadas por Raworth, analisadas dentro do setor de telecomunicações em países que oferecem estes serviços por meio de empresas privadas.

A universalização do acesso à internet só pode ser garantida pelo Estado porque nenhuma empresa que siga as regras de oferta e demanda tem interesse em seguir por este caminho. E quando toda a população de um país tem acesso à rede, a sociedade caminha rumo à uma maior distribuição de riqueza, por permitir que diversos processos e atividades sejam realizados pela internet de forma menos custosa e sem grandes prejuízos ao usuário; de conhecimento, por ampliar o acesso à informação; e de poder, permitindo que os cidadãos tenham, no mínimo, a opção de participar nas decisões tomadas pelo governo e em movimentos ativistas contra ele.

Assim como é delicado o equilíbrio do planeta, também o é o equilíbrio das sociedades humanas. Os critérios que usamos para definir o progresso já não cabem mais quando o planeta dá claras indicações de esgotamento e desequilíbrio e quando a desigualdade, que deveria ter sido solucionada por um crescimento sempre maior – como aponta Raworth na palestra –, continua sendo ampliada e não garante o acesso a recursos básicos como aqueles descritos no modelo da Economia de Rosquinha: água, comida, energia, educação, saúde etc.

Por fim, para aqueles que se sentem presos pelas limitações da rosquinha, Raworth deixa um pensamento positivo: as fronteiras impulsionam a criatividade humana. Desta forma, fica ainda mais evidente para mim que os desafios para as lideranças transformadoras neste século são aqueles para os quais Mestre Rohm nos prepara. Acredito que, ao trabalhar em prol daquilo que é belo, justo e bom, nos aproximaremos naturalmente de modos de vida que condizem com o equilíbrio entre as necessidades humanas e as do planeta.

MATERIAIS CITADOS:

TED Talk de Kate Raworth: https://www.youtube.com/watch?v=Rhcrbcg8HBw

Podcast do InternetLab: https://open.spotify.com/episode/64qCanpkw2hwMpmYGalGaM?si=6vmLDQ2HRDyk8OkB4mnA9Q

Artigo de Eduardo Gudynas no blog da Oxfam: https://views-voices.oxfam.org.uk/2012/02/is-doughnut-economics-too-western/

Reportagem do The Guardian: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/08/amsterdam-doughnut-model-mend-post-coronavirus-economy