Vi Bacurau e Joker com mais de um mês de diferença. Antes de assistir ao filme estadunidense, no entanto, já tinha passado, na internet, por algumas imagens que comparavam ambas as obras. Como tento assistir a filmes em estado mais cru possível sobre eles – não vejo trailers, resenhas, nem críticas, pois acho divertido ter o mínimo de noção sobre a obra que assisto e o máximo de surpresa lá depreendida –, não me aprofundei em entender nenhuma semelhança ou ler comentários sobre isso. Agora, após vê-los, a analogia é inevitável para quem adorou ambos.
Os dois filmes são um retrato bruto da sociedade representada, de nós, embora passem em momentos temporais diferentes de hoje, quando escrevo, e diferentes entre si. Bacurau é de um futuro não muito distante – mas ainda futuro – em uma pequena cidade nordestina com nome de pássaro, na qual nasce gente. Joker se passa na também fictícia Gotham, só que na década de 1980. O futuro não muito distante e os anos de três décadas precedentes soam, nos filmes, extremamente contemporâneos, em que pesem as novas tecnologias digitais do primeiro e os elementos visuais que remontam aos anos 80, como a qualidade da TV picotada, do segundo.
A estética de Gotham e a de Bacurau também são extremamente diferentes. O que de semelhante, aliás, existiria em dois filmes passados em cenários tão distintos? Uma cidade interiorana, com pinta de vilarejo e sertão árido, e uma metrópole lotada, suja, que vive sob o caos cotidiano urbano. A resposta se dá em parte dos recados que se tira dos filmes sobre as dinâmicas sociais estabelecidas no canto de cima brasileiro e também na cidade criada para estar acima da linha do equador. Tentando não entrar muito em spoilers, os poucos moradores de Bacurau se deparam com uma tentativa de apaziguamento e segregacionismo de pessoas que representam o status quo e a população hegemônica, enquanto milhões de habitantes de Gotham, os que não fazem parte da elite que lá há, também sofrem com esse processo.
Ao contrário de Bacurau, que vive e se reinventa pelo conjunto de suas personagens, em Joker, essa tentativa de marginalização é relatada especificamente com Arthur, um trabalhador renegado e sem atenção devida pelo universo incapaz de lidar e cuidar das pessoas, de suas verdades e de suas vulnerabilidades – notadamente, pelo Estado insuficiente, que chega em sua realidade unicamente pela covarde escolha da repressão, como Claudia precisamente já apontou por aqui. Em Bacurau, a covardia estatal se dá personificada em seu prefeito que trabalha contra os interesses de seus próprios eleitores.
É dessa insuficiência de garantir direitos fundamentais para a dignidade humana que nasce, em ambos os filmes, o elo que para mim foi o mais forte entre eles: os dilemas éticos e morais que surgem no espectador durante as duas obras. Ao mexer com sombras e causar uma quase-simpatia por manifestações com valores impróprios à democracia, à liberdade e à defesa da vida, os filmes expõem um paradoxo diante da brutalidade. O contexto de abandono, de insuficiência e de diferentes formas de violência me instigaram, incomodaram e fizeram repensar princípios antes intocáveis. A resposta como violência não é compreendida como solução para esses dilemas, ao mesmo tempo que não vilaniza imediatamente quem responde com ela. A justiça social é escancarada em uma nova faceta em que a violência não deixa de ser uma opção para a resistência, ainda que se a abomine.
Em Bacurau, essa violência acaba sendo mais facilmente tragada, justificada e comemorada. As salas de cinema não temiam comemorar a morte de quem queria matar aquela gente – justamente porque a violência cometida contra os cidadãos de Bacurau é uma violência palpável, que vem daquelas armas, em um projeto de extermínio. Já em Joker, a violência física também existe. Mas, antes dela, vem a violência psicológica, moral, abusiva. A tensão é menos objetiva, em um forte drama psicológico e social, capilar nas subjetividades. Ela é feita pela construção social de uma pessoa com doença mental que reage como o Arthur – transformado, após o segundo ato do filme, em Coringa – e mobiliza outros tantos inconformados com a forma com que as figuras de poder agem. Então, por conta desses dilemas morais e éticos que surgem, a torcida é mais contida, quando existente, para que Joker e a legião que se identificou com essa insatisfação continuem dando seus passos agressivos.
O fim, é evidente, não justifica qualquer coisa nos meios, inclusive a barbárie. Mas limitar Joker ou Bacurau a uma polarização e dualidade entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, é ignorar toda a força social que existe em ambas obras, toda a potência cinematográfica que de forma tão humana pode nos retratar com nossos dilemas e contradições, sem nos negar como sociedade doente em tempos odiosos e separatistas, ao tempo que não aponta dedos nem relações de causalidade óbvias ou clichês. Como produtos do meio que somos, e como ambos os filmes são produtos de nós, é fundamental observar essas películas como forma de reconhecimento da sociedade, no Nordeste brasileiro, em cenários nova-iorquinos, e em todo canto. Para entender as semelhanças entre os filmes. Para entender as nossas semelhanças.
Se Bacurau fosse um estudo de personagem imerso na sociedade – como Joker -, poderia se chamar Lunga. Se Joker fosse um estudo de uma cidade imersa em suas personagens revoltadas – como Bacurau -, poderia se chamar Gotham.