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DESENVOLVIMENTO HUMANO, FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS TRANSFORMADORAS E GOVERNANÇA SOCIAL
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Trabalho, tecnologias digitais e a produção de riqueza: e nós com isso?

Texto escrito por Gabriela Costa e Gabriel Valuano Com pouco destaque na grande mídia, chamam a nossa atenção notícias recentes acerca da situação dos trabalhadores de aplicativo na China. Em um mundo cada vez mais dominado pelas plataformas digitais e economia dos aplicativos, anuncia-se um movimento que se choca com a tendência frequentemente observada de…

Trabalho, tecnologias digitais e a produção de riqueza: e nós com isso?

Texto escrito por Gabriela Costa e Gabriel Valuano

Com pouco destaque na grande mídia, chamam a nossa atenção notícias recentes acerca da situação dos trabalhadores de aplicativo na China. Em um mundo cada vez mais dominado pelas plataformas digitais e economia dos aplicativos, anuncia-se um movimento que se choca com a tendência frequentemente observada de expansão sem limites desse mercado: a China está se movendo para garantir que as empresas de aplicativo protejam a classe de trabalhadores, dando ênfase inicial para os direitos dos entregadores de comida. 

Tal acontecimento ocorreu como efeito dos cada vez mais frequentes protestos e greves dos trabalhadores de aplicativo no país, que reivindicam melhores condições de trabalho. Este tema tem gerado uma grande repercussão na opinião pública, o que contribuiu para a maior visibilidade das reivindicações desses trabalhadores. A título de contextualização e para a melhor compreensão do cenário em que este evento ocorre, vale ressaltar o dado de que a China, segundo apontou Jabbour (2021), é o país em que há atualmente o maior número de greves no mundo, bem como é um país em que há uma crescente de 200% nos salários médios no período 2008-17.

Uma das medidas que as autoridades chinesas estão tomando para melhorar as condições de trabalho dos entregadores de aplicativo é a determinação de que os trabalhadores devem receber mais de 1 salário mínimo, ter um seguro que cubra acidentes e doenças, além da necessidade da criação de sindicatos e que as empresas estimulem os funcionários a participar dessas organizações para lutarem por seus direitos (DESLANDES, 2021).

Ler as recentes notícias das conquistas relacionadas ao tema da uberização do trabalho na China nos instigou a retomar as reflexões que iniciamos em abril ao escrevermos o texto “Reflexões sobre o trabalho precarizado e a necessidade de lideranças transformadoras”. Neste texto, em síntese, abordamos o tema da precarização e informalização do trabalho, que pode ser observada em sua expressão máxima hoje na uberização do trabalho.. 

No caso específico do Brasil, os entregadores de aplicativo tiveram seu trabalho ainda mais precarizado em decorrência da pandemia de Covid-19 pois, como destaca Santos (2020), ao entregarem produtos por delivery, são esses trabalhadores que estão garantindo a possibilidade de quarentena para muitas pessoas. À medida em que a demanda de seu trabalho aumenta em função do isolamento social, maiores são os riscos a que se submetem em seu ofício.

É perceptível essa dinâmica durante a pandemia de covid-19: em 2020 as empresas de aplicativo tiveram crescimentos acima da média devido ao aumento de 187% dos gastos com delivery enquanto os trabalhadores sofrem condições cada vez mais precarizadas de trabalho devido a pandemia (FERNANDES, 2021). Essa lógica em que as empresas criam ou se aproveitam de crises existentes para implementar e/ou intensificar a doutrina neoliberal e gerar mais lucros para as empresas é explicada por Klein (2008) na obra A Doutrina do Choque, livro em que a autora traz inúmeros exemplos daquilo que ela nomeia de capitalismo de desastre. 

Com a falta de regulação que assegure o mínimo de dignidade para o trabalho que se tornou ainda mais precário, no Brasil, em junho de 2020, entregadores começaram a se mobilizar para denunciar os abusos das empresas de aplicativo e para trazer o tema da uberização para a discussão pública. Os entregadores de aplicativo foram às ruas, em greve, por melhores condições de trabalho e reivindicando que as empresas de plataforma se responsabilizem por seus funcionários. As empresas que gerenciam os aplicativos, entretanto, ignoraram as reivindicações dos entregadores e a classe continua sofrendo as consequências da exploração do seu trabalho, além de haver represálias direcionadas para aqueles trabalhadores que aderiram à greve, o que dificulta o caminho de mobilização da classe apontado por Rohm e Gonçalves (2021).

Tendo percebido as dificuldades para realizar novas greves, os entregadores de aplicativo anunciaram recentemente a criação de um movimento chamado “Apagão dos Apps” com o objetivo de dar continuidade de modo criativo e estratégico à luta por seus direitos. O movimento consiste em sensibilizar a opinião pública para a construção de uma aliança entre os trabalhadores de aplicativos e os consumidores, de modo a apoiar os trabalhadores que estão na linha de frente. Seria uma combinação de táticas de greve e de boicote, em que os consumidores exercem um papel fundamental de pressão coordenada pela reivindicação de direitos às empresas e, ao mesmo tempo, de sensibilização do público geral acerca deste fenômeno da precarização do trabalho que, ao fim e ao cabo, também o impacta.

Como discutido no texto anterior, terceirização e precarização do trabalho vêm numa crescente que demonstra haver uma tendência à uberização para a manutenção da acumulação de capital. Levando em consideração essa tendência, junto ao anúncio do movimento veio a lembrança de que essa é uma luta “contra a uberização, que vai chegar em você!”. Entendemos que o movimento decide partir de um ponto muito potente e desafiador, que é estimular o exercício da cidadania, da ação e participação política, propondo que a sociedade pense e debata a questão da uberização do trabalho para que, coletivamente, exerça o poder de decidir os rumos que seguiremos em prol do bem comum. Em tempos de neoliberalismo, em que se propaga e se aproveita do individualismo com sua lógica do empreendedor de si mesmo, a saída encontrada pelo movimento nos parece confrontar uma das bases que sustentam esse sistema de exploração e controle.

Diante da dificuldade material agravada pelos choques ainda mais agressivos para as populações empobrecidas do Sul Global, combater o individualismo neoliberal é uma necessidade. Os chamados Estados-Plataforma, tal como destaca Lévy (2021), que se aproveitam do desenvolvimento tecnológico para a exploração das pessoas ao invés de se promover as liberdades e combater as mazelas sociais, não deveriam soar como uma inevitabilidade do “progresso tecnológico”, mas sim um grande desafio a ser enfrentado. 

Embora esse possa parecer um destino irremediável, entre a fatalidade do ser e do parecer existe o interesse das grandes organizações que operam para manipular a sociedade de tal modo a difundir a racionalidade que torne essa crença verossímil. Frente a esse esforço que visa a difusão de uma crença fatalista e conformista entre as pessoas, é comum o pensamento de que as táticas adotadas pelas empresas de tecnologias, as quais buscam exclusivamente aprimorar a acumulação de capital por meio da exploração de todas as atividades possíveis da vida das pessoas, são também inevitáveis ou imutáveis, prometendo-se, inclusive, ser esse o caminho para o progresso da humanidade.

Enquanto estudantes de Administração, nos deparamos a todo instante com histórias de “grandes figuras empreendedoras” ou casos de grandes empresas de sucesso que representam esses interesses de um suposto “progresso da humanidade”. Urge, entretanto, uma mudança de mentalidade que fuja desta, autocentrada e mercadológica, que contamina majoritariamente a mentalidade que vemos na Administração, voltada enfaticamente para a reprodução de capital, sem que se pense as desigualdades e as tomadas de decisão que comumente ferem o bem comum.

Como defende Walter Benjamin, o conceito de progresso precisa ser melhor analisado, pois atrelado ao neoliberalismo, é um progresso fundamentado na ideia de catástrofe (e que progresso deveríamos esperar, daquele advindo do capitalismo de desastre?). Devemos nos tornar capazes de pensar e propor alternativas e estratégias de desenvolvimento diferentes das que hoje imperam, estratégias que sirvam à sociedade, não a um grupo de pessoas que expropriam a riqueza alheia por meio de uma imagem abstrata e impessoal como a do mercado. Precisamos nos perguntar: a serviço de quem e do quê administraremos e trabalhamos? A serviço de quem devemos fazer operar as novas tecnologias?

REFERÊNCIAS

DESLANDES, G. China se move para aumentar a proteção aos entregadores de comida por aplicativo. Revista Opera, 2021. Disponível em: < https://revistaopera.com.br/2021/08/03/china-se-move-para-aumentar-a-protecao-aos-entregadores-de-comida-por-aplicativo/>. Acesso em: 6 set. 2021.

FERNANDES, B. Gastos com delivery aumentaram 187% durante a pandemia, em 2020. O Dia, Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: <https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2021/01/6073383-gastos-com-delivery-aumentaram-187–durante-a-pandemia-em-2020.html>. Acesso em: 6 set. 2021.

JABBOUR, E. Trabalho escravo na China? TV Grabois, 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uvKqumRTpFY>. Acesso em: 6 set. 2021.

KLEIN, N. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,  2008.

LÉVY, P. Pierre Lévy: “Muitos não acreditam, mas já éramos muito maus antes da internet”. El País, 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/eps/2021-07-01/pierre-levy-muitos-nao-acreditam-mas-ja-eramos-muito-maus-antes-da-internet.htm>. Acesso em: 6 set. 2021

ROHM, R. H. D.; GONÇALVES, C. C. N. E. As mutações do mercado de trabalho sob a égide do capitalismo e os impactos para o trabalhador. In: VIII Simpósio Internacional Trabalho, Relações de Trabalho, Educação e Identidade, 2021.

SANTOS, B. de S. A cruel pedagogia do vírus (Pandemia Capital). São Paulo: Boitempo, 2020.

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  • Inspiração:
    Charles Dubois

    O importante é estar pronto, a qualquer momento, a sacrificar aquilo que somos em favor do que podemos vir a ser.

2 respostas

  1. Avatar de Ricardo Rohm

    Estimulante a reflexão de Gabriela e Gabriel acerca das formas de precarização do mundo do trabalho atualmente em curso, mais especificamente a uberização dos entregadores de aplicativos, trazendo, inclusive, os números preocupantes da realidade brasileira, contrastada com as mudanças e conquistas de trabalhadores em curso no gigante chinês. Além disso, os alunos questionam o papel do administrador, sobretudo, seu posicionamento ético, contextualizando alguns dos desafios contemporâneos na esfera das novas tecnologias digitais e de comunicação face a seus impactos na democratização e bem estar da sociedade no capitalismo contemporâneo.

  2. Avatar de Marcelo Canesin

    Novamente Gabriel e Gabriela voltam ao tema da uberização do trabalho com maestria. Em tempos de devastação dos direitos trabalhistas no Brasil e preços absurdos da gasolina, os ganhos dos trabalhadores são mais espremidos ainda. Haja força de vontade e coragem para se arriscar no trânsito selvagem em troca de tão pouco. Enquanto isso a China rema contra a maré pela defesa da qualidade de vida de sua população. Muito boa referência à Doutrina do Choque de Klein. Os efeitos das crises são perfeitas justificativas para mais abusos e exploração dessas empresas de aplicativo. Tempos muito difíceis vem pela frente e nós administradores vamos precisar de muita sabedoria para lidar com tudo isso!! Obrigado por mais essa reflexão 👏🙏

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